Diário Atual
João Madureira

João Madureira

Como transmontano sempre me senti um pouco como os índios inuítes americanos. E atualmente ainda mais do que nunca. Se os bons americanos, como os úteis portugueses da capital, dependem do sistema, pois são o próprio sistema, os índios americanos, tal como os transmontanos, dependem da ajuda do governo e do álcool.

Os inuítes, tal como os transmontanos, são livres mas estão circunscritos a jardins zoológicos para seres humanos aos quais chamam reservas (na nossa dimensão, província), onde estão condenados a repetir a lastimável dança da chuva em frente de um aglomerado de turistas.

Afinal ninguém é livre. Somos sempre prisioneiros dos outros e de nós próprios.

António Vitorino de Almeida conta na sua autobiografia o que lhe aconteceu quando, ainda jovem, andava a mostrar a sua arte aos portugueses poderosos. Apesar da excelente impressão causada por alguns dos seus recitais, a obtenção de um trabalho fixo, à altura das suas capacidades concretas e que lhe garantisse um ordenado ao fim do mês e uma reforma para mais tarde, ficou na estaca zero.

Mas, para seu desalento e desespero, via constantemente determinados lugares serem ocupados por pessoas que não possuíam efetivamente nada que se equiparasse, em termos de habilitações académicas – já para não falar do seu trabalho concretizado como pianista e compositor – com o currículo que enviava para os devidos lugares, normalmente sem receber qualquer tipo de resposta.

Conta que começou a habituar-se a uma explicação recorrentemente dada em relação à sistemática nomeação dessas figuras cinzentas, apenas mais coloridas, na maior parte dos casos, nos salários que auferiam.

Diziam-lhe tentando explicar: “Coitado, tem uma personalidade muito fraquinha e complexada, praticamente nunca passou da cepa torta, falhou em tudo o que tentou, mas é um apaixonado pela arte! E, por isso, achámos bem dar-lhe este apoio… Foi uma questão de humanidade!”

De facto, como relata o mestre compositor, o problema não reside no simples ato caritativo – “a alegada questão da humanidade…” –, mas sim no facto muito mais relevante, de que tudo isto faz parte de um sistema infindável, o famoso “círculo vicioso de mediocridade organizada”, dado que o presente protetor já foi ele mesmo protegido e, por isso mesmo, gera novos incapazes com idênticas caraterísticas.

E, passado pouco tempo, o tal coitadinho frustrado que dizia amar as artes sem ser correspondido por nenhuma delas, estava transformado numa genuína autoridade, pois todas as deliberações artísticas dependiam agora das suas doutas opiniões, quando não dos seus caprichos, tais como o direito ao trabalho, à carreira e à própria vida de verdadeiros artistas.

Para rematar o relato, António Vitorino de Almeida, parafraseando um poema de David Mourão-Ferreira, que acabara de conhecer naquela altura e com quem tinha gravado um “ótimo” disco, cuja matriz parece que desapareceu no incêndio do Chiado, escreve que dessa forma “se perpetuava a dramática luta entre os capazes e os capados…”

Em Portugal a crise está mesmo a sugerir-nos que façamos como Salazar, que evitava cerimónias públicas em que tivesse de se expor em varandins mas que não descurava a economia doméstica, bastando-lhe o recato do seu gabinete de trabalho, onde a par das decisões relativas aos destinos do país, reservava um tempinho para dar enquadramento a algumas preocupações de tipo caseiro, nomeadamente o elevado preço a que tinham chegado os ovos na capital, razão pela qual escrevia cartas para Santa Comba a solicitar que lhe enviassem uma galinha pedresa com o objetivo de estabelecer regras específicas de contenção de despesas na economia do lar.

Nestas alturas lembro-me sempre da parábola bíblica da separação do trigo e do joio. O problema que se me coloca sempre é que não se pode arrancar o joio sem destruir o trigo.

O joio é uma erva daninha cujas raízes se entrelaçam nas raízes do trigo, do centeio ou da cevada e não há forma de as arrancar sem arruinar a colheita.

E lembro-me ainda, e sempre, sei lá bem por que ordem de razões, do seguinte texto bíblico: “Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas, para que não suceda de que eles as pisem com os pés e que, voltando-se contra vós, vos dilacerem.” — Bíblia, Novo Testamento, Livro de Mateus, Capítulo 7, versículo 6.

 

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