(Forma e Formas de Tratamento – Parte II)
Em Portugal, cada vez mais se discute sobre o “grau” de proximidade, intimidade e respeito veiculado pela forma de tratamento “você”, pelo que decidi dedicar-lhe o presente artigo.
O pronome supracitado tem a sua origem na expressão de reverência “Vossa Mercê”, inicialmente utilizada como forma de tratamento dada aos reis, com a qual se destacava a “sua graça”, a “sua misericórdia” ou a “sua benevolência”.
No entanto, como a espécie humana é, em grande parte, feita de vaidosos, arrogantes e “lambe-botas”, muitas foram as formas de tratamento que se foram desencantando, tal era a rapidez com que desencantavam, sobretudo porque o seu uso acabava por ser alargado e vulgarizado, e era necessário encontrar algo sempre novo e melhor a destacar nas figuras importantes do reino.
Os reis, de “mercê”, passaram a “alteza”, “majestade” e não sei que mais; e os nobres, não satisfeitos com as sobras de “Sua Alteza”, rapidamente passaram da “mercê” para a “excelência” ou “senhoria”, em função da posição ocupada na hierarquia do reino.
Quanto à forma “Vossa Mercê”, de tão banalizada que foi, acabou por cair em desuso, deixando órfãos alguns filhotes um pouco mais “populares”, como o “vossemecê” e o “você”, que perderam “estatuto”, talvez também em função dos debiques gradualmente sofridos pela forma original…
O certo é que o tempo muda as vontades e estas também mudam os “tempos”, e a verdade é que, principalmente entre os jovens, há actualmente quem utilize o “você” como forma respeitosa de marcar distanciamento. Digo respeitosa, porque, mesmo não revelando grande preocupação em fazê-lo de um modo mais formal, a verdade é que, pelo tom de voz, pela entoação, pela postura e pelo sentido de oportunidade evidenciados, os falantes em questão revelam um respeito muito mais genuíno do que o veiculado por uma simples forma de tratamento.
Quanto à população em geral, são sobretudo os mais velhos e os culturalmente mais instruídos e menos influenciáveis que ainda consideram o pronome de tratamento “você” como uma forma menor, a ser utilizada quando existe alguma intimidade ou proximidade entre os interlocutores, e apenas em situações de “igual para igual” ou “superior para inferior”.
Na realidade, se “ranking” houvesse para as “formas da terceira pessoa do singular” utilizadas oralmente entre pessoas “comuns”, a utilização do pronome “você” ficaria em terceiro e último lugar, bem longe da expressão “o senhor” (“O senhor Manuel vem comigo?”), ou mesmo daquela em que utilizamos o nome de baptismo do nosso interlocutor (“O Manuel vem comigo?”).
Na minha opinião, o mais importante de um acto de fala é que a mensagem e a intenção comunicativa sejam claras em todas as suas vertentes. A forma de tratamento é apenas mais um “instrumento” como muitos outros que, isoladamente, pouco ou nada significam.
É tempo de todos compreenderem que o principal objectivo da linguagem, verbal e não verbal, foi, é e será sempre o de permitir comunicar, e que, não menos do que o excesso de simplicidade, a riqueza e a rigidez excessivas de uma língua serão sempre um entrave para a sua correcta utilização.
Yann Sèvegrand
2 comentários
Estimado colega Yann, como estou na formas e convenções de tratamento (sobretudo do Pg. europeu) desde há muitos anos e focussando agora o VOSSEMECÊ para uma contribuição num congresso da especialidade vai aqui a minha pergunta:
Quando é que ouviu pela última vez o tratamento de VOSSEMECÊ?
(se possível, especificando o lugar o as pessoas implicadas)
Obrigado já – e tb. pela sua contribuição interessante – gh (Kiel/Alemanha)
VOSSEMECÊ? No Alentejo quase todos os dias.