João Soares Tavares

No próximo dia 3 de Janeiro passa mais um aniversário da morte de João Rodrigues Cabrilho o transmontano natural do concelho de Montalegre descobridor da Costa da Califórnia. Não podia deixar passar a efeméride sem evocar o notável navegador. Desta vez recordo uma sua faceta menos conhecida: pioneiro do jornalismo na América e primeiro autor publicado nesse continente.

Cabrilho, nascido em Portugal, (Lapela de Cabril) viveu a maior parte da sua vida no Novo Mundo. Pelos vinte e poucos anos fixou residência em Santiago de los Caballeros, cidade em cuja fundação colaborou, (1) primeira capital da Guatemala, um território que então ocupava a maior parte da América Central.

No dia 11 de Setembro de 1541, entre as duas e as três da manhã, a cidade foi devastada por um tremor de terra, chuvas torrenciais e lama arrastada do monte vulcânico contíguo a Santiago.

João Rodrigues Cabrilho não se encontrava em Santiago. Chegou de uma viagem pouco tempo após a catástrofe, observou os estragos, entrevistou testemunhas e descreveu os acontecimentos.

“A cidade ficou tão destruída, maltratada e devastada, e as pessoas tão aterrorizadas que todos tiveram vontade de a abandonar e despovoar para que ficasse esquecida para sempre.” (2) Cabrilho descreveu a fatalidade em jeito de reportagem, publicada nos finais de 1541. (Ver fig.)

É uma narração pormenorizada num estilo não muito apurado, mas, permite concluir: Cabrilho escrevia relativamente bem. “Era um homem culto em comparação com a grande maioria dos conquistadores, alguns mesmo analfabetos.” (3) Num estudo realizado, em 798 pilotos espanhóis do século XVI, ¼ não sabia assinar o nome. (4)

O autor não dá uma explicação dos fenómenos verificados, mas relata-os com pormenor. Verifica-se ainda que a gramática e o vocabulário utilizados são de um homem culto, mas não de um escritor refinado.

Porque razão é a única obra escrita por Cabrilho?

Este barrosão participou nas conquistas do México e da Guatemala. Não lhe faltaria assunto para escrever. Porém, nunca o fez. Os acontecimentos ficavam para os cronistas, nomeadamente para Bernal Díaz del Castillo, seu companheiro no exército de Hernán Cortés – o cronista ‘oficial’ da conquista. Ora, Cabrilho foi militar e navegador. Não era um cronista. Escreveu a reportagem porque ficou muito emocionado – conforme se constata pela leitura – quando viu a destruição da cidade que ajudou a fundar, e teve conhecimento da morte de muitos dos seus amigos e companheiros de batalhas durante a conquista.

A publicação desse documento, a primeira obra impressa no Novo Mundo, identifica ainda Cabrilho como pioneiro do jornalismo no continente americano.

A edição fac-símile original foi analisada cerca de 1886 por um historiador mexicano que registou a seguinte inscrição na última página do original: “Fue impresa en la grã cibdad d México en la casa de Iuã Cromberger año de mill y quinientos y cuarenta y uno” (5). Daqui se conclui ter sido publicada entre 11 de Setembro e 31 de Dezembro de 1541.

Não é conhecida na América qualquer obra impressa anterior à data referida. Aliás, vem ao encontro da implantação da Imprensa no Novo Mundo – cidade do México – entregue à Casa Cromberger, que terá iniciado a sua actividade em 1541 ou perto dessa data.

Localizei duas edições fac-símile do original. Uma encontra-se em ‘Anales de la Sociedad de Geografía é Historia de Guatemala’, e a outra na ‘Real Biblioteca de San Lorenzo de El Escorial’ em Espanha. Trata-se de um documento de valor incalculável cujo rosto se reproduz na figura. As Entidades responsáveis pelo documento facultaram-me a cópia de uma dessas edições que guardo comigo. (Ver fig.)

Há cerca de dois anos e meio, aproveitando uma palestra sobre Cabrilho que apresentei no Ecomuseu de Barroso – Espaço Padre Fontes, propus ao Presidente da Câmara de Montalegre presente na sessão, a criação de uma sala-museu onde figurassem elementos relacionados com a vida de Cabrilho, para manter viva a sua memória. Uma sala activa que permitisse a visita além de turistas, sobretudo de jovens das escolas de Barroso e de outras regiões. Uma sala didáctica, formativa, ponto de partida para a realização de diferentes actividades, nomeadamente exposições temporárias com trabalhos diversificados realizados pelos alunos sobre a vida e a obra de Cabrilho. Creio não ser muito dispendioso atendendo à facilidade como se reproduzem documentos na actualidade. Informei na altura: se a minha proposta encontrar a receptividade da Câmara, declaro que a obra escrita por Cabrilho da qual guardo uma cópia será a minha oferta simbólica, a peça inicial para figurar nessa sala-museu. Proferi estas palavras, repito, há 2 anos e meio. Os presentes aplaudiram a proposta. Entretanto, o tempo passou… Até hoje, da Câmara de Montalegre veio apenas o SILÊNCIO. Não estranhei, porque havia gastos prioritários, nomeadamente na realização da “festa das bruxas das Sextas-feiras 13”. Por isso fui aguardando…

No recente mês de Outubro o NB publicou uma notícia que me deixou perplexo. Transcrevo dessa notícia as palavras do Presidente da Câmara proferidas durante uma sessão cultural: «estamos a fazer um projecto de remodelação da biblioteca municipal, ampliação para a garagem da Câmara» e continuou: «esses dois espaços vão dar abrigo ao centro de estudos Bento da Cruz e ao espaço cultural Barroso da Fonte (…) é uma obra importante do ponto de vista cultural.» Pergunto eu ao Presidente da Câmara: Por acaso não resta alguma salita, ou mesmo um vão de escada para evocar João Rodrigues Cabrilho? A obra deste notável barrosão não é importante do ponto de vista cultural?

O Homem que deveria servir de exemplo é discriminado por conterrâneos. Não se compreende!

Fosse Cabrilho um “bruxo” queimado na fogueira da Inquisição, seria por certo um herói para a autarquia de Montalegre e comemorado com todas as honras na “festa das bruxas das Sextas-feiras 13”. Mas, não é. Cabrilho foi apenas um simples emigrante (um dos primeiros emigrantes barrosões) à procura de melhores condições de vida. Depois alcançou feitos notáveis: comandante de uma companhia de besteiros, conquistador, navegador, descobridor de novos mundos, primeiro autor publicado na América, Almirante de esquadra… Os autarcas de Montalegre não lhe reconhecem grandeza suficiente para o homenagearem nesse novo centro cultural. Contudo, é citado quando lhes convém!

Tivesse Cabrilho nascido em Castro Daire, pois também o queriam filho da terra e a história seria outra… Em tempos, deram o seu nome a uma avenida e a uma Escola dessa vila. Festejaram-no com dignidade enquanto as dúvidas da naturalidade persistiram. Quando descobri documentos históricos que deslocaram o seu berço natal para o concelho de Montalegre, Castro Daire esmoreceu. Até o nome da Escola mudou.

Por certo, em SILÊNCIO irá permanecer a autarquia montalegrense no próximo 3 de Janeiro, dia do aniversário da morte de João Rodrigues Cabrilho.

Criar uma sala-museu em Montalegre e instituir o “Dia de Cabrilho” no dia 3 de Janeiro para evocar o descobridor (não confundir com feriado) era o mínimo que a Câmara deveria fazer em prol do navegador barrosão. O assunto por mim sempre lembrado é sistematicamente ignorado. Poderão os autarcas de Montalegre continuar a ignorar Cabrilho, continuar a ignorar o autor desta crónica, os barrosões saberão tirar as devidas ilações, porque ninguém consegue aprisionar o vento da História.

Todavia, até as histórias mais tenebrosas algumas vezes têm um final feliz. Neste final de ano Cabrilho não caiu totalmente em desgraça. Valha-nos a lucidez do responsável pela montagem do presépio junto ao edifício camarário, pois voltou a homenagear Cabrilho transfigurando a sua estátua na Praça do Município no figurante do primeiro Rei Mago a chegar junto do Menino Jesus. Nesta quadra natalícia Cabrilho é Rei Mago em Montalegre, conforme se observa na figura do presépio. Apetece-me dizer: “Deus escreve direito por linhas tortas…”

Termino desejando aos meus leitores um Natal Feliz e que o Menino Jesus propicie em 2012 mais clarividência à mente dos governantes deste meu desditoso País.

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João Soares Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

NOTAS:

(1) “Libro Viejo de Fundación de Guathemala”, Archivo General del Gobierno de Guatemala

(2) “Relación del espantable terremoto…” de Juan Rodríguez, ciudad de México, 1541, Real Biblioteca de San Lorenzo de El Escorial, Espanha

(3) “João Rodrigues Cabrilho Um Homem do Barroso?” de João Soares Tavares, C.M.M., 1998

(4) “Los hombres del Océano. Vida cotidiana de los tripulantes de las flotas de Indias. Siglo XVI de Pablo Pérez Mallaína, Sevilha, 1992

(5) “João Rodrigues Cabrilho Um Homem do Barroso?” de João Soares Tavares, C.M.M., 1998, transcrito de “Bibliografía Mexicana del siglo XVI” de Joaquín García Icazbalceta, Mexico, 1886

 

LEGENDAS DAS FOTOGRAFIAS:

Fig. 1 – Rosto da obra escrita por Cabrilho em 1541, primeira publicação na América (Arquivo pessoal do autor)

Fig. 2 – Presépio instalado junto do edifício camarário de Montalegre com a estátua de Cabrilho transfigurada no primeiro Rei Mago a chegar junto do Menino Jesus.

 

 

“Notícias de Barroso” de 16-12-2011

 

 

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